Adeptos se organizam em igrejas evangélicas, sindicatos ou em comunidades como a da Rocinha.
Pelas ondas do reggae, o rastafarianismo chegou na Bahia. Com a cara, a voz e os cabelos de Bob Marley, Peter Tosh, Bunny Wailer e outros reggaemen, ouvidos nas ruas do Maciel, Pelourinho, ou mesmo em seus prostíbulos, locais aonde primeiro chegavam as músicas das ilhas do Caribe. No contato com a cultura baiana, o rastafarianismo adquiriu uma cara própria. "Assim como é impossível definir um marco zero para o reggae na Bahia, é impossível chegar a uma definição única do rastafarianismo baiano. O que existe é uma identidade multifacetada", explica Antônio Gody, sociólogo, pesquisador e referência no estudo do reggae na Bahia.
Hoje, em Salvador, o rastafarianismo se aproxima do sindicalismo e luta por emprego e pela cidadania do rasta; se liga ao pentecostalismo, com os rastafaris convertidos às igrejas evangélicas; torna-se mera estética, com os dreadlocks (tufos de cabelo) representando a valorização da raça negra. Mas há ainda um local onde é possível encontrarmos mais próximo à raiz do movimento, ao rastafarianismo jamaicano, marcado pela existência de comunidades rurais.
Na Rocinha, uma vilazinha não urbanizada e escondida no Pelourinho, rastafaris dividem seu tempo entre a produção de música e a leitura e discussão da Bíblia, livro máximo do rastafarianismo. Vivem à parte do esquema de produção da sociedade capitalista, fazendo reggae, falando de paz e união e seguindo à risca alguns preceitos e rituais do movimento. Principalmente aqueles que fazem meditar e levam à elevação espiritual.
CONEXÃO JAMAICA Mais do que um novo ritmo, uma nova música, o reggae foi a porta de entrada do rastafarianismo, um estilo de vida, filosofia, religião ou movimento (dependendo de quem o siga), que nasceu na Jamaica e encantou os jovens negros de Salvador em meados da década de 70 e início de 80. Encantou e fez mais forte a auto-estima, a vontade de lutar contra um sistema opressor e capitalista. Junto com as vozes anticolonialistas que soavam por todo o mundo, os rastas da Bahia fizeram coro contra um outro tipo de escravidão: não mais física, mas mental.
Hoje, mais de 20 anos depois deste momento inicial, algo permanece intocado e ainda latente no coração daqueles que se dizem rastas: o desejo de liberdade, expresso nas canções de Bob Marley - The songs of freedom - que até hoje reverberam por todos os cantos desta cidade e do mundo, independente da cor ou classe social de quem as ouve. A força do reggae e rastafarianismo na Bahia pode ser entendida em parte pela semelhança entre Salvador e as cidades do Caribe. As ruas do Dois de Julho que se parecem com as de Havana, o calor do sol que esquenta e amolece o corpo, a cor e os cabelos trançados dos seus habitantes, os sons dos tambores africanos... Além disso, a realidade socioeconômica também é parecida.
Historicamente, o tráfico trouxe à Bahia e levou às ilhas caribenhas negros de regiões semelhantes. E os ecos da escravidão se vêem ainda na pobreza das ruas enlameadas dos bairros de Alagados e da Trenchtown (cidade sobre valas) jamaicana. "A única coisa que me faz lembrar que estou em Salvador e não na Jamaica é a língua, o português", disse Denis Brown, um dos grandes representantes da música reggae, ao produtor Lino de Almeida, responsável pelo programa Rasta-Reggae e um dos fundadores da Legião Rastafari da Bahia, criada em 1983 e extinta quase dois anos depois. E é justamente a diferença de idiomas a primeira causa das diferentes versões que assumiu o rastafarianismo em Salvador.
O primeiro contato dos baianos com o rastafarianismo se dá através da música, todas em inglês. Os regueiros, em sua maioria jovens negros da periferia, nem sequer o português dominavam completamente. E mesmo quando se inicia o esforço para realizar as traduções, o que não estava nas canções era ignorado. Somente mais tarde é que a Bíblia passaria a ser lida e seguida pelos rastas baianos.
FORÇA E PODER Apesar da falta de informações, a música é uma força poderosa e por si só atraiu adeptos ao rastafarianismo. De acordo com Antônio Gody, existe uma levada cardíaca no baixo elétrico do reggae que penetra fundo nas pessoas. "Até 78, eu ouvia muitos tipos de músicas, mas nada que me tocasse tanto. Com Jimmy Cliff, Bob Marley e Peter Tosh, as canções começaram a tocar fundo meu coração e eu quis me aprofundar nesta música", confirma Joacy Neves, presidente da Associação Beneficente, Cultural e Recreativa União Rastafari, fundada em 1993. "Chegamos a reunir cerca de 500 pessoas de toda a cidade na Liberdade, para ouvir música, discutir e tentar entender as letras.
Éramos jovens, negros, pobres, e existia em comum ainda o interesse pelo reggae", afirma Lino. Estas reuniões na Liberdade, bairro sede do Ilê Aiyê, mostra o terreno fértil e a época propícia para a mobilização em torno da valorização da cultura negra. "Estava tudo colado, os primeiros rastas surgem nesta época, ao mesmo tempo em que os blocos afros (o Ilê é fundado em 74) e o movimento negro, que se inicia em 78. E uma das coisas mais interessantes do rastafarianismo foi a reconstrução da Bíblia numa perspectiva étnica", ressalta Gody. A aproximação foi tamanha que uma entidade carnavalesca, o bloco Muzenza, chega a se proclamar o bloco do reggae.
FRUSTRADAS E SOFRIDAS Para Jessy Congo, 52 anos, rastafari e líder da banda Congo Naya, natural da comunidade de Monte Sinai, da Guiana, não importa se na Jamaica ou em outros países, a verdade é que as pessoas estavam frustradas, sofridas e, por isso, entraram no movimento. "Eu fui um dos que foram sugados, em 1979. Todo mundo estava à procura de amor", contou, na casa em que atualmente mora com seu grupo, no Pelourinho. Este discurso - "Um amor/Um coração/Vamos nos unir e ficar bem" -foi aqui difundido por Bob Marley, bem antes de os rastas baianos se debruçarem sobre a Bíblia, sobre o Velho Testamento, que traz os fundamentos do rastafarianismo.
"Deixamos o cabelo crescer com dreadlocks primeiro por conta da identificação com o ídolo. Só depois é que começamos a questionar tudo e soubemos que este era um dos preceitos seguidos à risca pelos rastafaris, por conta do que está escrito na Bíblia", confessa Joacy. "O rastafarianismo chega aqui diluído", afirma Marcos Guimarães, guitarrista da banda Adão Negro e pesquisador sobre a identidade dos regueiros e rastas da Bahia. "Acho que, aqui, a estética ainda é mais forte do que tudo. O cabelo rasta virou moda, virou fashion.
Mas, na verdade, até esta nova concepção de beleza já traz por si só uma mudança de comportamento", ressalta Guima, como também é conhecido. Para Lino de Almeida, que já viajou algumas vezes ao Caribe, por conta de seus trabalhos com artistas como Gregory Isaacs e Starlights, "como religião, o rastafarianismo só existe na Jamaica. Aqui, ele é muito mais um movimento, que pode comportar várias coisas". Hoje, é difícil encontrar um rastafari ortodoxo, como são denominados os que seguem à risca os mandamentos de ser vegetariano, não beber, não cortar nem raspar pêlo algum do corpo, não ter relações sexuais com mulher menstruada. Os rastas da Guiana parecem ser as exceções. Vindos do Caribe, os integrantes da Congo Naya são exemplos de rastas que mais se aproximam do movimento original.
IGREJAS PENTECOSTAIS Em Salvador, dois fenômenos são marcantes no rastafarianismo: a aproximação dos jovens rastas com as igrejas pentecostais e com as organizações de classe. Por viver de acordo com o Velho Testamento e ter um batista (Marcus Garvey) como um de seus fundadores, desde sua origem o rastafarianismo esteve próximo às igrejas evangélicas. Em Salvador, muitos rastas acabaram se convertendo, numa radicalização da proposta religiosa do rastafarianismo, em detrimento do caráter mais social, de luta contra a Babilônia, do rastafarianismo.
De qualquer forma, o reggae continua a fazer parte da vida dos rastas convertidos. Importantes reggaemen como Cristal e Nengo Vieira. Durante um tempo, chegou a haver grandes shows no templo montado no Cine Art, do Politeama. Em Salvador acontece até mesmo algo impensado para os rastas ortodoxos, que são contra qualquer aproximação com o mundo capitalista. Numa versão que se aproxima da luta de classes e movimentos sindicais, os membros da União Rastafari - que se reúnem no sindicato dos metalúrgicos, enquanto não encontram uma sede própria - batalham por empregos e profissionalização.
MOVIMENTO AFRO-AMERICANO O rastafarianismo surgiu na Jamaica num momento de grande crise econômica. O rastafarianismo é um movimento que surge na Jamaica, em um momento de grande crise econômica. Descendentes de escravos africanos viviam na miséria, em péssimas condições e esta situação deixou terreno fértil para germinar as sementes do pensamento anticolonialista, batista e etiopianista do jamaicano Marcos Garvey. No início do século XX, Garvey, que parte para a Inglaterra em 1917, lança seu discurso de valorização da raça negra, enaltece seu poder contra as forças colonialistas, prega o retorno à Mãe África e lança uma profecia, em 1920. Ele pede para os negros olharem para a África e prevê a coroação de um negro etíope que se tornaria o rei dos reis.
Garvey chega até mesmo a comprar uma companhia de navegação, para incentivar o retorno à África, mas ele mesmo nunca chegou até este continente. No entanto, em 1930, parece que suas previsões estavam realizadas. Na Etiópia, é coroado imperador o jovem Ras Tafari Makonnen, sob o título de Haile Selassié I. Selassié clama ser descendente do Rei David, da linhagem direta do Rei Salomão e da Rainha de Sabá (respectivamente, um hebreu e uma etíope), "algo que, se não é possível ser confirmado, também nunca foi provado ao contrário", explica Gody. Haile se proclama Rei dos Reis, Senhor dos Senhores, Leão da Tribo de Judá.
Sua figura é associada ao novo Messias, ao Cristo do Velho testamento. E a Etiópia, ao paraíso na terra, ou Zion, como também é chamada. Na verdade, de acordo com Antonio Gody, Selassié ganha notoriedade pouco antes da Segunda Guerra. "No final da década de 30, Mussolini invade a Etiópia, deixando claro em seus escritos que estava vingando a batalha de Adoa, de 1896, quando o então imperador Menelik II e Makonnen, tio de haile, expulsam os italianos. A nova invasão italiana organizada por Mussolini mostra a importância que tinha a Etiópia no cenário mundial. Foi o único pais africano que conseguiu não se submeter ao colonialismo", conta Gody.
Com a invasão, Selassié viaja para a Europa pedindo ajuda e negociando formas de fazer Mussolini recuar. É o primeiro governante africano a entrar para o Grupo das Nações, que passaria a ser a ONU. Nesse mesmo período, funda nos EUA a Ethiopian World Federation, para dar suporte à restauração da Etiópia. Com o fim da guerra e a derrota da Itália, o Selassié mostrou sua consideração doando terras na região de Shashamane aos afro-descendentes que quisessem retornar à Mãe África. Mesmo sem ter noção de sua importância, faz nascer na Jamaica, mais especificamente em Kingston, onde já existiam igrejas batistas ligadas ao pensamento garveyista, três correntes do rastafarianismo: Nyabinghi, Ethiopian National Society e Twelve Tribes of Israel.
SEIS PRINCÍPIOS Um dos marcos do movimento rastafari foi a criação, na década de 40, da Pinnacle Commune (Comunidade do Pináculo, do Apogeu, do Pico), fundada por Leonard Howell, um dos mais importantes líderes do movimento rasta e fundador da Ethiopian National Society. Howell desenvolve seis princípios, cuja defesa acabam levando-o à prisão: Ódio à raça branca; superioridade da raça negra; vingança contra os brancos por sua maldade; negação, perseguição e humilhação do governo e autoridades da Jamaica; preparação para o retorno à África e reconhecimento de Haile Selassié I como ser supremo e único soberano da raça negra.
Na verdade, a intolerância destes princípios vai contra as principais características adotadas pelos rastas ao redor do mundo. A da vida pacífica, em harmonia com Deus e a natureza, de respeito e tolerância com todos os seres, além da existência de acordo com as escrituras e negação das posses materiais. Por causa de seus discursos contra a Inglaterra e o governo da Jamaica, Howell é preso por dois anos. Depois de solto, recruta um grande número de seguidores e funda a Pinnacle Commune nas montanhas sobre a cidade de Kingston.
Esta localização remota serve aos propósitos ao menos iniciais, de manter as autoridades afastadas. Isolada dos grandes centros, na comunidade o uso da Ganja (como o rastafarianismo identifica a marijuana, ou maconha) é adotado livremente e a erva santa, the holy herb, que possui seu uso justificado por passagens da Bíblia, cresce livremente e em abundância. Na verdade, é justamente o uso da ganja um dos principais motivos de discriminação, preconceito contra o rastafari. Fato que todo rasta faz questão de esclarecer.
Para o rastafari, o uso da ganja é ritualístico, religioso. Além disso, é utilizada com fins medicinais. Servida como chás contra dor de cabeça, calmante, para abrir o apetite e ministrado para adultos e crianças. Usa-se, também, na culinária, para fazer bolos, cocada, como tempero de feijão. "No rastafarianismo, a maconha é usada de uma forma ritualística, comedida, diferente da dimensão de alterar a percepção. Possui uso medicinal."
ESTIGMA DA MARGINALIDADE Entretanto, a marca da marginalidade, do tráfico, recai sobre o rastafari. Para Alumínio, 45 anos, rastafari e componente da banda Bem Aventurados, existe muito preconceito contra o rastafari. "E olhe que, assim como nem todo rasta usa dreadlock e nem todo dread é rasta, nem todo rastafari fuma", explica. "O rasta não é um maconheiro, que é uma degeneração do mundo contemporâneo", opina Antonio Gody.
De qualquer forma, a discriminação existe em diversas maneiras. "Veja um rasta dentro do ônibus: a cadeira do seu lado vai estar sempre vazia", conta Alumínio, sorrindo. Mas o pior preconceito, a forma mais eficaz da Babilônia de impedir o avanço do movimento, na opinião de Joacy Neves, é a negação ao emprego. "Os irmãos que não são músicos ou artesãos muitas vezes têm que desistir de sua estética e cortar os dreads para sustentar suas famílias. Já perdemos muitos adeptos por isso", afirma o presidente da União Rastafari. Alumínio e outros rastas que fazem parte da comunidade que fica na Rocinha, Pelourinho, por enquanto não precisam se preocupar com isso.
Eles não formam uma comunidade rural, nem estão cercados por montanhas, como na Jamaica, mas possuem vizinhos que os respeitam e admiram sua opção de vida e hábitos. "Não temos nada a falar sobre eles, a não ser coisas boas. Eles não incomodam ninguém, são respeitadores, gostam das crianças e fazem músicas muito bonitas. Falam de Jesus o tempo todo e também contra a injustiça social", disse Rosângela Auera, 32 anos. "Para a convivência, eles são ótimos. E a coisa que eu mais gosto é que eles não soltam palavrão", finaliza Maria Juracy, 45 anos, há dez vizinha dos rastafaris da Rocinha.
Fonte: Correio da Bahia
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